E tem mais, caso o nosso amigo tradicionalista não esteja satisfeito:

“Homens de todas as raças e condições ‘conspiraram contra o Senhor e contra o Seu Ungido’. Eram gentios e judeus os que instigaram, promoveram, e executaram a Paixão de Cristo. Judas traiu-O, Pedro renegou-O, todos os outros Discípulos O abandonaram.”

Em resumo, somos mais deicidas que os judeus, porque estes mataram a Cristo ignorando que ele era o Filho de Deus, enquanto nós, bem cientes disso, seguimos crucificando-o todo dia com nossos pecados.

Ah, mas os judeus cospem em cristãos na rua...

Aí apareceu aquela história, sempre com aquela mensagem subliminar de “não justifica terrorismo, mas é por isso que não podemos apoiá-los”, de que judeus ortodoxos tratam com enorme hostilidade os cristãos que vivem na Terra Santa ou peregrinam a Jerusalém. Acontece? Sim, acontece. Recentemente um jornalista de um canal israelense de televisão se disfarçou com um hábito e acompanhou um franciscano pelas ruas de Jerusalém para registrar as reações; a dupla recebeu cusparadas até de uma criança e de um soldado.

Obviamente o nosso amigo cruzadinho virtual não viu, mas esse tipo de situação já recebeu críticas duríssimas de autoridades, incluindo o embaixador de Israel na Santa Sé:

O embaixador Raphael Schutz ainda retuitou um comunicado do rabino-chefe de Jerusalém condenando a hostilidade contra cristãos:

E eu seria capaz de apostar que, apesar disso tudo, ainda é muito melhor ser cristão em Israel que em um território controlado por terroristas islâmicos.

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Ah, mas Pio X disse a Theodor Herzl que os judeus não deviam ter um país

Os tradicionalistas também ressuscitaram um relato do fundador do sionismo, Theodor Herzl, sobre sua visita ao papa Pio X em 1904, para pedir apoio à causa de uma terra para onde os judeus pudessem emigrar e viver em paz. Isso é o que o papa teria dito a Herzl:

“Nós não podemos apoiar esse movimento [sionista]. Não podemos impedir os judeus de irem a Jerusalém, mas não podemos de forma alguma apoiar isso. Mesmo que nem sempre fosse santa, a terra de Jerusalém foi santificada pela vida de Jesus Cristo. Como chefe da Igreja, não posso lhe dizer outra coisa. Os judeus não reconheceram Nosso Senhor, e é por isso que não podemos reconhecer o povo judeu. (...) Sei muito bem que é desagradável ver os turcos de posse de nossos lugares santos. Somos forçados a ar. Mas apoiar os judeus para que possam obtê-los – os Lugares Santos – é algo que não podemos fazer.”

E aí aqueles que criticam quem eleva as entrevistas de Francisco nos voos das viagens papais ao status de magistério pontifício agora atribuem infalibilidade a umas frases ditas por São Pio X numa audiência. Enfim, a hipocrisia.

Ainda que neste caso houvesse um pano de fundo teológico, a oposição de Pio X (e de alguns de seus sucessores) ao estabelecimento de um Estado judeu é, sejamos francos aqui, um juízo político-diplomático, que poderia estar certo ou errado. Nem mesmo Pio XII – que, ao contrário do que diz a campanha de calúnia orquestrada contra ele, atuou diretamente para salvar centenas de milhares de judeus durante o Holocausto – foi um entusiasta da partilha da Palestina; mas, lendo a sequência de três encíclicas publicadas por ele em um intervalo de um ano e meio em 1948 e 1949 (Auspicia quaedam, In multiplicibus curis e Redemptoris nostri cruciatus), percebe-se que a maior preocupação do papado era com a liberdade de o aos lugares santos, o que explica a defesa de um status internacional para Jerusalém. De qualquer maneira, lembre-se que a Santa Sé e Israel normalizaram relações diplomáticas há 30 anos.

Ainda que tivesse um pano de fundo teológico, a oposição de Pio X (e de alguns de seus sucessores) ao estabelecimento de um Estado judeu é um juízo político-diplomático, que poderia estar certo ou errado

Conclusão?

A conclusão é óbvia. Católico que tenha um pingo de decência não pode usar nem a acusação de deicídio, nem o tratamento grosseiro que cristãos às vezes recebem de judeus, nem a opinião de Pio X sobre um Estado judeu, nem o fato de que em Israel o aborto é legalizado, nem nada para ficar indiferente diante do terrorismo contra os judeus, ou para pensar (nem vou falar de escrever) que “foi bem feito”, que “eles mereceram” ou qualquer outra coisa na linha do “mas veja bem...” Como diz o Polzonoff:

“Não há nada mais maligno, espiritual e intelectualmente, do que tornar complexo um acontecimento que choca por sua simplicidade: movidos pela ideologia, terroristas do Hamas mataram inocentes. Ponto. Ponto final. Ponto de exclamação. Qualquer que tenha sido a motivação desses homens não importa. Não desdiz a verdade inável de que as vítimas eram inocentes. Inavelmente inocentes. Inocentes, inclusive, dos possíveis e prováveis pecados de seus líderes políticos e grupo étnico/religioso.”

Isso não tem nada a ver com alinhamento incondicional a Israel. Você pode defender a solução de dois Estados, pode discordar de um milhão de coisas em Israel, pode inclusive achar que a operação atual esteja violando os princípios da guerra justa (aliás, o Franklin Ferreira tem uma série de artigos sobre a guerra justa em Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Bento XVI). Mas não me vá racionalizar o terrorismo, muito menos a sua reação de “no fundo, lá no fundo, eles merecem”.